
le é ex-integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), preso,
torturado e exilado. Na volta ao Brasil após a anistia, Liszt Vieira
foi o primeiro deputado federal eleito pelo PT no Rio de Janeiro em
1982, militante destacado dos movimentos Diretas Já e pela instalação de
uma Assembleia Constituinte e coordenador do Fórum Global no encontro
ambiental internacional Rio-92. Foi secretário estadual de Meio Ambiente
e, durante os governos Lula e Dilma, presidiu por dez anos o Instituto
Jardim Botânico do Rio de Janeiro, órgão responsável pela aplicação das
diretrizes assumidas pelo Brasil junto à Convenção sobre Diversidade
Biológica da ONU. Mas para quem pensou que já tinha visto de tudo
na história brasileira das últimas décadas, Liszt Vieira estava
enganado. A ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, construída desde o golpe
que afastou Dilma Rousseff da presidência em 2016, e a agenda de
retrocessos que seu governo passou a implementar no país foram motivo de
análises que renderam dezenas de artigos. E muitos deles agora reunidos
no recém-lançado livro A Democracia Resiste – O Brasil de 2018 a 2020 (Editora Garamond). Em conversa com a RBA,
Liszt Vieira fala sobre alguns dos temas presentes no livro, como a
omissão ou conivência das elites frente a um “governo neofacista” que,
afirma, destrói o Brasil: “As elites defendem seus interesses e não
estão preocupadas com democracia”. Crítico
ferrenho da “política antiambiental” levada a cabo por Ricardo Salles
no Ministério do Meio Ambiente, Liszt Vieira lamenta a atual submissão
do Brasil aos interesses dos Estados Unidos nas frentes comercial,
militar e ambiental: “O Brasil hoje é uma colônia que obedece às ordens
do governo Trump”, diz. Um dos fundadores da Rede Sustentabilidade, ele
acabou deixando o partido por não encontrar nele um projeto definido. E
afirma que continua apostando na formação de uma frente de esquerda no
Brasil. Confira a entrevista Noves
fora o apoio quase unânime do mercado financeiro à política econômica liberal
de Paulo Guedes, parte significativa da direita brasileira (aí incluídas mídia,
indústria etc.) dá sinais de descontentamento – e temor – frente ao atual
governo. As elites nacionais perderam o controle sobre Bolsonaro? Durante
um ano e meio Bolsonaro esteve fora de controle. Apoiou manifestações
de extrema direita pedindo o fechamento do Congresso e do STF.
Comportou-se como candidato a ditador e cometeu crimes de
responsabilidade. A partir da prisão de Queiroz, do cerco a seus filhos,
das denúncias de sua ligação com as milícias mafiosas e da
possibilidade de impeachment, Bolsonaro mudou de atitude. Aliou-se aos
corruptos do Centrão e mudou um pouco sua retórica dirigida a seu grupo
de apoio, que alguns chamam de “gado”. O Brasil está sendo
destruído pelo governo de Bolsonaro, que abala os fundamentos das
instituições que cuidam da saúde, educação, pesquisa científica,
cultura, meio ambiente, política externa independente. O grosso do
orçamento é desviado para o mercado financeiro. Bolsonaro não caiu
porque conta com o apoio de boa parte do mercado, dos militares e dos
evangélicos que viram seus interesses atendidos pelo presidente que
desgoverna o país. É possível contar com essas elites na resistência ao autoritarismo ou a economia sempre falará mais alto? O
fundamentalismo de mercado corrói o Estado e, com o apoio da mídia,
divulga aos quatro ventos a panaceia das “reformas” pretensamente
modernizantes. A reforma trabalhista
iria salvar o Brasil. Depois, seria a vez da reforma salvadora da
Previdência. Em seguida, vieram as propostas da reforma tributária e
administrativa, ambas adiadas para depois das eleições. Só não dizem que
essas reformas vão “salvar” e enriquecer ainda mais o 1% da população que ganhou dinheiro com a pandemia. Liszt Vieira: Os liberais não são democratas. Apoiam ditaduras de acordo com seus interesses Bolsonaro
escorrega entre o populismo de direita e o equilíbrio fiscal do
neoliberalismo ortodoxo de Paulo Guedes. Quer fazer obras, gastar para
ser popular, mas não quer perder apoio do mercado simbolizado na figura
de Guedes. As elites defendem seus interesses e não estão preocupadas
com democracia. No Brasil e na América Latina, os liberais não são
democratas, eles apoiam golpes e ditaduras quando acham que seus
interesses econômicos estão ameaçados. Você
é muito respeitado no movimento ambientalista brasileiro, como militante,
professor ou ocupando funções públicas. Qual sua avaliação sobre a gestão de
Ricardo Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente? A política antiambiental do atual ministro Contra
o Meio Ambiente – é assim que ele deveria ser chamado – é criminosa. Com o
apoio de Bolsonaro, Salles está “passando a boiada” para destruir florestas,
transformadas em pastos para gado, agricultura – sobretudo a soja – e
mineração, na lógica tradicional da economia primário-exportadora. Agora, quer
suprimir manguezais e restingas a
fim de favorecer a especulação imobiliária. Com o avanço do
desmatamento na Amazônia e o Pantanal devastado pelos incêndios, ambos
com o apoio nem tão discreto do governo federal, o presidente,
intoxicado pelas fake news que se acostumou a espalhar,
declarou que seu governo devia ser elogiado pela proteção do meio
ambiente. O atual governo tem uma visão militar do meio ambiente. É o
inimigo a ser abatido. Liszt
Vieira: Tudo indica que Trump vai pagar com a derrota eleitoral sua
atitude negacionista em relação à pandemia e ao aquecimento global Lá
se vão 28 anos desde que você foi coordenador do Fórum Global na Rio-92. Como
percebe o atual momento da discussão internacional sobre mudanças climáticas? O
estrago causado pela postura negacionista do governo Trump em relação ao
aquecimento global ainda pode ser revertido? Há salvação para o Acordo de
Paris? Tudo indica que Trump vai pagar com a
derrota eleitoral sua atitude negacionista em relação à pandemia e ao
aquecimento global. Rompeu com a OMS e com o Acordo de Paris. Não tenho ilusões quanto a um possível governo
Biden, de perfil conservador, mas deverá haver mudanças na área ambiental e de
direitos humanos. A noção de sustentabilidade adquiriu força
com o apoio das Conferências Internacionais de Meio Ambiente – da Conferência
Rio-92 ao Acordo de Paris de 2015 – que mostraram a catástrofe iminente da
crise climática e da perda da biodiversidade. O órgão da ONU
sobre a crise climática, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (conhecido por IPCC, na sigla em inglês), calcula que o
aquecimento global está hoje em torno de 1,5 grau. Isso provoca graves
perturbações no clima, como secas, inundações, calor extremo etc. A
tendência é chegar breve a 2 graus, o que agravaria os acidentes
climáticos. Será um desastre se não houver mudanças drásticas para
evitar as emissões de gases de efeito estufa, principalmente pelo
desmatamento de florestas e pelo uso de combustível fóssil. E existem
previsões pessimistas de que o aquecimento global pode chegar a 4 ou 5
graus, o que seria catastrófico. Liszt Vieira: A perda da biodiversidade no Brasil põe em risco a segurança alimentar, hídrica, climática e a saúde humana De consequências igualmente desastrosas é a
perda da biodiversidade pela destruição da fauna e flora. O Brasil abriga a
maior diversidade biológica do planeta. O conjunto dos biomas terrestres (Mata
Atlântica, Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal e Campos do Sul) abriga 20%
das espécies do planeta, 20% da flora global. Mas o uso da
biodiversidade não é revertido em melhorias socioeconômicas e a pobreza
persiste em várias áreas urbanas e rurais no país. A perda da
biodiversidade no Brasil põe em risco a segurança alimentar, hídrica,
climática e a saúde humana. Há
alguma luz no fim do túnel? A pressão internacional face ao aquecimento
global e à perda da biodiversidade tende a aumentar. Os impactos ambientais vão
provocar secas, inundações, calor extremo, desertificação, derretimento das
calotas polares e elevação do nível de água nas cidades e países costeiros,
redução drástica na produção agrícola etc. Acredito que o estrago causado pelo
negacionismo de Trump e Bolsonaro pode ser revertido. Está em questão a sobrevivência
da humanidade. Apesar da evidente necessidade de se
comporem frentes para defender a democracia no país, a esquerda, com
raras exceções, não obteve sucesso nas tentativas de unificação para a
disputa das prefeituras das principais capitais. A que você atribui essa
dificuldade? A luta agora não é de um candidato nem de
um partido. É a luta de uma grande frente democrática ainda não
constituída. O povo brasileiro não quer a volta da ditadura, da tortura,
das prisões, da censura, da superexploração do trabalho e da entrega do
país a gigantes econômicos multinacionais. Hoje, com o país afogado em
uma emergência sanitária, com 14 milhões de desempregados, 29 milhões de
dependentes de bicos, cerceado por um governo que desmonta o Estado e
bloqueia seu papel na reconstrução nacional, a situação política não
admite mais nenhuma ingenuidade. Liszt Vieira: Uma frente de esquerda é o primeiro passo para o caminho capaz de opor a civilização à barbárie A
independência do país está ameaçada, mas os partidos se preocupam mais
com as eleições municipais, como se estivéssemos em uma conjuntura
democrática normal. Recusaram-se a compor uma frente antifascista. Mas a
frente já acontece de forma pedagógica e promissora em alguns
municípios, como, Belém, em torno da candidatura de Edmilson Rodrigues.
com Psol, PT, PDT, Rede, PCB, UP e PCdoB. Ocorre também em
Florianópolis, Macapá, Recife, Manaus, Rio Branco e Campinas, envolvendo
uma diversidade de partidos. A fragmentação da esquerda fortalece o
projeto autocrático e neofascista que vem se implantando no Brasil. Uma
frente de esquerda é o primeiro passo para o caminho capaz de opor a
civilização à barbárie. O que representa para o Brasil a
postura de submissão do atual governo – e, sobretudo, das Forças Armadas
brasileiras – aos interesses e expectativas dos EUA? O
Brasil hoje é uma colônia que obedece às ordens do governo Trump. Passou
a votar na ONU contra direitos humanos, meio ambiente, autonomia
nacional de todos os países, passou a criticar seu principal aliado
comercial – a China – numa política subalterna e dependente que desonra a
tradição do Itamaraty. Os chamados “patriotas” brasileiros querem
entregar as riquezas naturais e instituições estratégicas como a
Petrobras ao capital estrangeiro. O Brasil não teve nenhum ganho
econômico com essa submissão. Os militares aceitam essa relação de
vassalagem, mesmo não havendo mais Guerra Fria nem perigo do comunismo,
na expectativa de obterem armas e munições para equipar as Forças
Armadas. Como não há inimigo, prevalece o estúpido conceito de inimigo
interno. Ou seja, todos aqueles que protestam por melhores condições de
vida. Creio que um futuro governo mais afinado com os interesses
do Brasil irá reestabelecer a política externa independente, hoje
abandonada, e implantar um projeto brasileiro de interesse nacional. Liszt Vieira: O avanço da extrema direita começa a se chocar com seus limites. Começa a se fortalecer uma reação democrática O “Fascismo Eterno”, conceito desenvolvido por Umberto Eco citado em um dos teus artigos, assombra o mundo? O
avanço da extrema direita recolocou a discussão. Umberto Eco visualizou
14 características do fascismo eterno. Entre elas, o culto da tradição,
recusa da modernidade, irracionalismo e desprezo pela cultura, rejeição
do espírito crítico, da diversidade e da diferença, racismo e
xenofobia, nacionalismo vulgar, elitismo militarista, invenção do herói
ou mito, exaltação da morte, linguagem pobre e elementar. Essas
características se aplicam a todos os governos de extrema direita
contemporâneos. Mas esse avanço começa a se chocar com seus limites. Uma
possível derrota de Trump vai isolar esses países. Começa a se
fortalecer uma reação democrática. Esse processo pode levar anos, mas
está em curso. E no
Brasil? As lideranças políticas de oposição rejeitaram a
proposta de uma campanha nacional em favor do impeachment de Bolsonaro,
quando ele ostensivamente apoiava as manifestações pelo fechamento do
Congresso e do Supremo. Alegaram que o impeachment seria derrotado na
votação dos parlamentares. Esqueceram que a Campanha das Diretas Já
perdeu na votação, mas ganhou extraordinário apoio na sociedade. O
Brasil que pensa, sonha e sente mostra indignação e vai à luta. Mas as
lideranças partidárias de oposição parecem aceitar a melancolia da
derrota de 2018. O governo está destruindo a educação, saúde,
cultura, pesquisa científica, meio ambiente, política externa. E apoia a
violência contra os povos indígenas, quilombolas, lideranças
camponesas, movimentos sociais. Bolsonaro tem um projeto neofascista
visando a criar o caos e a violência para que a ordem seja
posteriormente restabelecida por uma ditadura militar. Mas, como diz o título do meu novo livro, a
democracia resiste. Contra o autoritarismo e o neoliberalismo, mais democracia
para criar novos espaços de liberdade onde poderão ecoar a voz dos silenciados
e oprimidos. 
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